123 Milhas: a repercussão da Recuperação Judicial

Como o caso expôs os desafios e a percepção pública sobre o direito recuperacional
por Natália Salça

A Recuperação Judicial do Grupo 123 Milhas transcendeu os limites do meio especializado em processos recuperacionais e alcançou uma repercussão entre o público em geral sem precedentes no Brasil. O caso revela não apenas desafios processuais e financeiros, mas também uma fratura na percepção pública sobre a RJ e sua capacidade de equilibrar a preservação empresarial com a tutela dos direitos dos consumidores.

Na sistemática prevista na Lei 11.101/2005, a recuperação judicial e a falência foram estruturadas para empresas com dívidas envolvendo majoritariamente fornecedores e instituições financeiras. Nesse contexto, a lógica da preservação da empresa faz sentido dentro de uma equação econômica que busca equilibrar o interesse dos credores, manter empregos e tributos, mediante a continuidade da atividade empresarial.

O caso do Grupo 123 Milhas, no entanto, escapou desse padrão tradicional com um passivo envolvendo milhares de consumidores pessoas físicas. Os números impressionam: o processo que teve início em Agosto de 2023, tem mais de 53 mil movimentações. Com cerca de 800 mil credores, a lista apresentada pelo Grupo é tão grande que foi impossível de ser publicada no Diário Oficial. E, ainda, diante da dimensão extraordinária do caso, foi necessária a nomeação de cinco administradores judiciais para a análise dos créditos.

Desde que se teve conhecimento da crise e do ingresso com o pedido de RJ, o caso 123 Milhas gerou reações intensas nas redes sociais, em razão do cancelamento das viagens. Após a apresentação do plano de recuperação judicial, memes circularam amplamente na internet, refletindo a indignação das pessoas com as condições de pagamento e as soluções propostas pelas devedoras.

Dessa forma, o caso “furou a bolha” ao levar para o debate público questões até então restritas aos especialistas em insolvência, expondo uma tensão fundamental dentro do sistema jurídico: de um lado, a necessidade de garantir que empresas em dificuldades possam se recuperar e continuar contribuindo para a economia; de outro, a legítima expectativa dos consumidores em receber pelos serviços contratados ou serem compensados pelos prejuízos sofridos.

A preservação da empresa é legítima, mas pode ocorrer às custas de consumidores? A aplicação estrita das normas jurídicas pode ser insuficiente para equilibrar os interesses em conflito nesse tipo de situação. Enquanto especialistas veem o direito recuperacional como essencial para a economia e a manutenção de empregos, o público pode enxergá-lo como um mecanismo de blindagem para empresas inadimplentes. O caso 123 Milhas evidencia esse dilema e reforça a necessidade de soluções que conciliem os diversos interesses tutelados com segurança jurídica.